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Artigo: “Maconha: porta de entrada pra quê?”, de Charles Eisenstein

Recebi por email a sugestão deste artigo fundamental de Charles Eisenstein sobre guerra às drogas e me sinto na obrigação de compartilhar com o mundo.

Um dos pontos altos do texto é a desconstrução do mito de que a maconha seria a “porta de entrada” para outras drogas.

Vale a pena ler, reler e compartilhar com amigos doidões e caretas, pois reflexão inteligente nunca é demais.

A versão original, em inglês, pode ser encontrada no site do autor. Boa leitura!

 “Maconha: porta de entrada pra quê?”* 

O abuso de substâncias tem menos a ver com as próprias substâncias do que com a vida que vivemos. Mas o que nos tem feito a Guerra às Drogas, e quais as suas consequências?

Você provavelmente já ouviu a respeito destes estudos sobre vício feitos com ratos enjaulados, em que os ratos compulsivamente apertam a alavanca que libera heroína ininterruptamente, até mesmo ao ponto de escolherem a droga ao invés da comida e se deixarem morrer de fome. Estes estudos parecem ter uma implicação muito desanimadora sobre a natureza humana. Não devemos confiar em nossa biologia básica; a busca pelo prazer nos conduz ao desastre; devemos, portanto, superar desejos biológicos através da razão, da educação e da inculcação de valores morais; aqueles cuja força de vontade e a moral são fracas devem ser controlados e corrigidos.

O estudo sobre o vício dos ratos também parece validar as principais características da Guerra às Drogas. Primeiro, a interdição: prevenir os ratos de provarem a droga. Segundo, a “educação” – condicionar os ratos a não apertarem a alavanca. Terceiro, a punição: fazer das consequências do uso de drogas tão amedrontadoras e tão desagradáveis que os ratos irão superar o desejo de apertar a alavanca. Como se vê, alguns ratos simplesmente tem uma fibra moral mais forte que outros. Para aqueles com uma fibra moral forte, a educação é o suficiente. Enquanto os fracos precisam ser dissuadidos com punições.

Todos estes atributos da Guerra às Drogas são formas de controle e, portanto, assentam confortavelmente dentro da narrativa mais abrangente da civilização tecnológica: a dominação da natureza, a elevação sobre um estágio primitivo, a conquista do desejo animal com a mente e dos impulsos básicos com a moralidade. Isto talvez explique porque o desafio de Bruce Alexander ao experimento dos ratos enjaulados foi ignorado e suprimido por tantos anos. Não era apenas a Guerra às Drogas que seus estudos questionaram, mas também paradigmas mais profundos sobre a natureza humana e nosso relacionamento com o mundo.

Alexander descobriu que quando se tira os ratos de pequenas jaulas e os coloca em espaçosos “parques para ratos” com ampla disponibilidade de exercício, comida e interação social, eles não optam mais pelas drogas; na verdade, ratos já viciados se afastam das drogas depois de serem transferidos das jaulas para os parques para ratos.

A implicação deste estudo é que o vício às drogas não é uma falha moral ou uma disfunção fisiológica, mas uma resposta adaptativa às circunstâncias.

Seria o auge da crueldade colocar ratos em jaulas e então, quando eles começarem a usar drogas, puni-los por isso. Isto seria como suprimir os sintomas de uma doença enquanto se mantem as condições necessárias para a própria doença. Os estudos de Alexander, se não uma contribuição para a redução do desenredar da Guerra às Drogas, estão certamente alinhados metaforicamente com ela.

Nós somos como ratos em jaulas? Estamos nós colocando os seres humanos em condições intoleráveis e, então, punindo-os por seus esforços para aliviar sua angústia? Se sim, então a Guerra às Drogas está baseada em uma premissa falsa e jamais poderá obter sucesso. E se nós somos tal quais ratos enjaulados, então qual é a natureza destas jaulas, e como seria uma sociedade com “parques para ratos”, mas aplicados aos humanos?

Eis aqui algumas maneiras de colocar o ser humano em jaulas:

  • Remova o tanto quanto for possível todas as oportunidades para uma auto expressão e um trabalho significativos. Ao invés disso, force as pessoas inevitavelmente a um trabalho simplesmente para que os permitam pagar as contas e servir aos débitos. Seduza outras pessoas a viverem da exploração deste tipo de trabalho aplicado aterceiros.
  • Separe as pessoas da natureza e do local. No melhor dos casos deixe a natureza ser um espetáculo ou um lugar para recreação, mas remova qualquer intimidade real com a terra. Abasteça as pessoas de comidas e remédios vindos de milhares de quilômetros de distância.
  • Mova a vida – especialmente a das crianças – para dentro de ambientes fechados. Deixe tantos sons quantos forem possíveis serem sons manufaturados, e as visões e paisagens serem visões e paisagens artificiais.
  • Destrua os laços comunitários lançando as pessoas em uma sociedade de estranhos, na qual não se confia realmente ou nem ao menos se sabe o nome dos que vivem ao nosso redor.
  • Crie uma constante ansiedade pela sobrevivência, transformando nossa existência dependente de dinheiro, e então fazendo do dinheiro algo artificialmente escasso. Administre um sistema monetário em que há sempre mais débito do que o próprio dinheiro.
  • Divida o mundo em propriedades, e confine as pessoas em espaços dos quais elas são donas ou pagam para usar.
  • Substitua a infinita variedade do mundo natural e artesanal, onde cada objeto é único, pela mesmice das mercadorias.
  • Reduza o íntimo reino da interação social à família nuclear e tranque a família em uma caixa. Destrua a tribo, a vila, o clã, a família extensiva como unidades sociais funcionais.
  • Faça as crianças ficarem dentro da escola em salas segregadas por idades, em um ambiente competitivo, onde elas são condicionadas a efetuar tarefas com as quais não se importam e as quais não querem fazer, mas o fazem simplesmente por recompensas externas.
  • Destrua as histórias e relacionamentos locais que constroem identidade, e substitua-os por notícias de celebridades, identificação com clubes esportivos e com marcas comerciais, e visões de mundo impostas por autoridades.
  • Deslegitime ou ilegalize o conhecimento popular sobre como curar ou cuidar uns dos outros, e coloque no lugar o paradigma do “paciente” dependente de autoridades médicas para a saúde.

Não é de surpreender que as pessoas na nossa sociedade compulsivamente apertem a alavanca: seja a alavanca da droga, a do consumismo, a da pornografia,a do jogo de azar ou a da gula. Nós respondemos com um milhão de paliativos às circunstâncias em que necessidades humanas reais de intimidade, conexão, comunidade, beleza e significado não são supridas. Estas jaulas dependem em grande parte da nossa aquiescência individual, mas isto não significa que um único momento de iluminação ou uma vida de esforço pode nos libertar completamente. Os hábitos de confinamento estão profundamente programados. Nem ao menos podemos escapar através da destruição dos carcereiros – ao contrário do experimento dos ratos, e ao contrário das teorias da conspiração, nossas elites são tão prisioneiras como o resto de nós. Compensações vazias e viciantes pelas necessidades não supridas são o que os seduz para que façam a parte deles em manter o status quo.

Não é fácil de escapar às jaulas. O confinamento não é incidental nas sociedades modernas, mas está profundamente tecido nos seus sistemas, nas suas ideologias, em nós mesmos. No fundo de tudo estão as narrativas de separação, dominação e controle. E agora, que nos aproximamos de uma grande reviravolta, uma mudança de consciência, nós percebemos que estas narrativas estão se acentuando, assim como sua expressão exterior – o estado de segurança, os muros e grades, a devastação ecológica – atinge extremos sem precedentes. Ainda assim seu centro ideológico começa a corroer; sua fundação está quebrando. Eu penso que a mudança (ainda não assegurada, sem sombras de dúvidas) a respeito da Guerra às Drogas é um sinal precoce de que estas superestruturas estão começando a romper também.

Um cínico poderá dizer que o fim da Guerra às Drogas não irá sinalar tal mudança: que as drogas fazem da vida nas jaulas mais tolerável e absorve a energia que iria, ao contrário, em direção a mudanças sociais. O ópio das massas, em outras palavras, são os próprios opiáceos! O cínico repudia a legalização da maconha em particular como uma pequena, quase insignificante, remada no sentido contrário da crescente correnteza do imperialismo e do ecocídio, uma inócua vitória que não faz nada para reduzir a corrente marcha do capitalismo.

Esta visão é um erro. Genericamente falando, as drogas não nos fazem prisioneiros mais eficazes: melhores trabalhadores ou consumidores. A mais notável exceção é a cafeína – significantemente, ela é virtualmente não regulada – que ajuda as pessoas a acordarem para os horários e agendas que elas não querem viver e se focarem em tarefas com as quais elas não se importam. (Eu não estou dizendo que isto é tudo o que a cafeína faz, e de modo algum eu quero rebaixar plantas sagradas como o chá ou o café, que estão entre as únicas infusões ou decocções ainda tomadas na sociedade moderna). Outra exceção parcial é o álcool, que como um aliviante de stress, de fato, faz da vida em nossa sociedade mais tolerável. Certamente outras drogas – estimulantes e opiáceos – também podem servir a estas funções, mas são, em último caso, tão debilitantes que os guardiões do capitalismo reconhecem nelas uma ameaça.

Ainda outras drogas, como a maconha e os psicodélicos, podem induzir diretamente a inconformidade, enfraquecer valores de consumo e fazer com que a prescrita vida normal pareça menos tolerável, e não mais. Considere por exemplo o tipo de comportamento associado com o fumante de maconha. O maconheiro não chega a tempo para o trabalho. Ele senta na grama com seu violão. Ele não é competitivo. Isto não é dizer que fumantes de maconha não contribuem com a sociedade; alguns dos mais ricos empreendedores da Era da Informação são fumantes de maconha que se declaram como tal. Em geral, contudo, a reputação da maconha e dos psicodélicos de serem destrutivas à ordem estabelecida não é sem fundamentação.

Os hesitantes, mas substanciais passos de vários estados e países em direção à legalização da maconha são significantes por vários motivos, além dos já conhecidos benefícios com relação ao crime, sistema carcerário, usos medicinais e indústria da cannabis. Primeiro, implica em uma liberação da mentalidade de controle: interdições, punições e condicionamento psicológico. Segundo, como eu acabei de expor, o objeto de controle – cannabis – é corrosivo às jaulas nas quais vivemos. Terceiro, é parte de uma profunda mudança de consciência da separação em direção à compaixão.

A mentalidade do controle se baseia na questão de quem e o que deve ser controlado. A Guerra às Drogas acusou o indivíduo usuário por fazer pobres escolhas morais, uma visão assentada na teoria que psicólogos sociais chamam “disposicionismo” [ou personalogia] – na qual seres humanos fazem escolhas de acordo com seu livre arbítrio,e baseados em caráteres e preferências estáveis. Enquanto o “disposicionismo” assegura a influência do ambiente, diz essencialmente que as pessoas fazem escolhas boas porque são boas, e escolhas más porque são pessoas más. Detenção, educação, e interdição afloram naturalmente desta filosofia, tal qual nossa justiça criminal o faz. Julgamento e paternalismo, inerente ao conceito de “correção”, são construídos sobre tal filosofia, pois declaram algo como: “se eu estivesse em sua situação, eu teria feito diferentemente de você”. Em outras palavras, é uma asserção de separação: eu sou diferente de você (e se você é um usuário de droga, eu sou melhor que você).

Note que a mesma crença motiva a Guerra ao Terror e, bem, a guerra contra todas as coisas em geral. Mas há uma concorrente filosofia chamada “situacionismo” que diz que as pessoas fazem escolhas a partir da totalidade de sua situação, interna e externa. Em outras palavras, se eu estivesse em sua situação, incluindo todo o seu histórico de vida, eu faria exatamente como você fez. É uma declaração de não-separação, de compaixão. Está subentendido, como Bruce Alexander demonstra, que comportamentos autodestrutivos e antissociais são uma resposta às circunstâncias e não uma fraqueza de disposição ou uma falha moral. O “situacionismo” motiva a cura ao invés da guerra, porque busca o entendimento e reparaas circunstâncias que dão margem ao terrorismo, ao vício às drogas, aos germes, às ervas daninhas, à ganância, ao mal, ou a qualquer outro sintoma ao qual nós nos lançamos em guerra.

Ao invés de punir usuários de droga, se pergunta, em qual circunstância o vício surge? Ao invés de erradicar ervas daninhas com pesticidas, se pergunta, quais as condições do solo ou agronômicas estão permitindo com que elas cresçam? Ao invés de aplicar a higiene de antissépticos extremos e antibióticos, se pergunta, qual o “clima do corpo” fez deste corpo ambiente saudável para os germes? Isto não é dizer que não devemos usar nunca antibióticos ou jamais prender um criminoso violento que está causando danos aos outros. Mas não podemos após isto dizer: “o problema está resolvido! O mal foi conquistado!”.

Aqui nós vemos como a legalização das drogas é consistente com a reversão de um paradigma que vem de milênios e o qual eu chamo de Guerra ao Mal. Tão velho quanto à civilização, foi originalmente associado com a conquista do caos e a domesticação da natureza selvagem. Através da história, veio a incinerar populações inteiras e quase fez o mesmo com o planeta. Agora, talvez, nós estejamos entrando em uma era um pouco mais gentil. É revelador que algo da natureza, uma planta, seja uma articulação para tal mudança.

O crescente movimento para o fim da Guerra às Drogas reflete uma mudança de paradigma distante do julgamento, culpa, da guerra e do controle e em direção à compaixão e à cura. A maconha é um ponto de partida natural, porque seu uso generalizado faz da caricatura do usuário moralmente fraco um abuso insustentável. “Se eu estivesse totalmente em sua circunstância, eu também fumaria – na verdade, eu fumei!”.

A maconha tem de longa data sido caluniada como a porta de entrada para outras drogas. Como argumento é dito que mesmo não sendo ela mesma tão perigosa, alicia os usuários a adentrar os hábitos e à cultura das drogas. Tal boato desmorona facilmente, mas talvez a maconha seja uma porta de entrada de outra natureza – a porta de entrada para a descriminalização de outras drogas, e mais além disso, para um mais compassivo e humilde sistema judiciário que não se baseie em punições. Ainda mais abrangente, talvez nos ofereça uma porta de entrada para fora dos valores da máquina e em direção a valores mais orgânicos, a um mundo simbiótico, a um mundo ecológico, e não a uma arena de separados e competitivos “outros” contra os quais devemos nos proteger e os quais devemos conquistar e controlar. Talvez os conservadores estivessem certos. Talvez a legalização da droga signifique o fim da sociedade tal qual a conhecemos hoje.

*Autor: Charles Eisenstein. Tradução: Bruno Baz.

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