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Indústria canábica não é indústria farmacêutica

Esse título tem se tornado um mantra nas minhas falas sobre cannabis no Brasil. Entender a cannabis como uma indústria independente e diferente da indústria farmacêutica é essencial para o futuro do comércio dessa planta no país. 

Essa distinção é premissa para a criação de qualquer política que diz respeito a cannabis e os processos de legalização. E porque hoje no Brasil os atores que discutem o processo de legalização da cannabis não entendem essa distinção? A resposta curta é: porque não respeitam a planta.

A cannabis deve ser pensada na contemporaneidade como um fenômeno social que tem aspectos políticos, sociais, antropológicos e biológicos. É uma planta quimicamente e biologicamente complexa, possui mais de 500 componentes e com todo avanço e tecnologia que temos, muito pouco se sabe dessas partes, do todo e seus efeitos no corpo humano.

Central em várias culturas, como rastafaris, hippies, psicodélicas espalhadas no mundo todo e parte da cultura tradicional em países como México, Jamaica, Marrocos e Índia.

Tradição essa que, ao se deparar com a guerra às drogas, encabeçada pelos EUA, foi vítima de um encarceramento em massa, principalmente da população negra e latina no mundo.

Impactos da proibição

Os 100 anos de proibição por motivações políticas foram marcados por movimentos sociais lutando (e conseguindo) variados níveis de legalização ao redor do planeta. Também foi um período em que ou as incoerências se acumularam ou revelam um projeto maior.

Os EUA categorizam a cannabis como uma droga perigosa “schedule I” e classificam como um produto sem eficácia médica mas, ao mesmo tempo, detém a patente do uso da planta como neuroprotetora, o oposto da propaganda massiva do próprio governo desde de a década de 60 que espalhou para o mundo que a cannabis queimava neurônio.

Junto à proibição veio a impossibilidade de pesquisar. Até hoje nos EUA só existe uma universidade que tem permissão do governo para distribuir insumos para os poucos pesquisadores que conseguem autorização para a pesquisa de cannabis.

A flor que é fornecida é de qualidade baixa, como o prensado do Brasil, com folhas e galhos, impossibilitando as pesquisas e forçando os pesquisadores a infringirem a lei para seguirem seus trabalhos, como relatou a pesquisadora e Dra. Sue Sisley em sua palestra na Cannabis Science Conference em Portland (2019).

Isso fez de Israel a grande potência de pesquisa sobre cannabis no mundo hoje, pelo simples fato da proibição da pesquisa não ter acontecido. O primeiro pesquisador a isolar a molécula do THC é Rafael Mechoulam nos anos 60 e é considerado o precursor a pesquisa canábica.

Sistema Endocanabinoide

Uma descoberta científica dos anos 90  elevou a discussão da legalização da cannabis à todas as esferas da sociedade:  A descoberta do SEC- Sistema Endocanabinoide. Mesmo que você nunca tenha ouvido falar desse sistema, ele está dentro de cada organismo, animal e vegetal.

Os desdobramentos dessa descoberta e das pesquisas que se sucederam tornam inegáveis o valor medicinal da cannabis. Mais que isso, colocam em xeque a própria medicina alopática moderna por mudar a perspectiva e o olhar sobre o corpo humano e sobre o que são as doenças.

O novo cenário que se coloca é: um novo sistema que compõe nosso organismo, formado por receptores cuja função é regular e manter a homeostase, nosso equilíbrio. Por ironia do destino,  os componentes que se ligam nesses receptores são de uma planta proibida por um século chamada Cannabis, capaz de curar e melhorar uma lista intensa de enfermidades.

Vale lembrar que os substratos e produtos dessa planta não podem ser considerados medicamentos segundo alguns governos e sociedades de medicina por serem considerados fitoterápicos. Essa resistência política impede os avanços das pesquisas para o estágio final que é o teste em humanos, fechando assim o ciclo vicioso de falta de evidências. Apesar disso as pesquisas continuam avançando nos países e estados legalizados e dão força para a legalização no mundo.

Isolar não é a melhor opção

A indústria farmacêutica é pautada pela lógica e proteção de patentes, por isso a cannabis como planta inteira não é interessante. Melhor seria isolar, sintetizar os componentes para assim serem vendidos com controle como fazem com todos os outros derivados de plantas.

A grande questão é que usar a planta toda, sem isolar seus componentes, torna sua ação mais efetiva. Sendo assim, a práxis de isolar componentes, sintetizar em laboratório tornam-se obsoletas e menos eficientes.

Por consequência, a única forma de controlar o uso de uma planta passa a ser protecionismo político e desinformação.

Criando leis para limitar componentes da planta, burocratizando e fazendo um trabalho extensivo de não fornecer informação de qualidade para a população em geral, deixando assim esse poder nas mãos das grandes indústrias farmacêuticas e conglomerados médicos, porque são esses atores que tem o poder histórico sobre a narrativa da saúde. 

Contrariando a lógica da Indústria farmacêutica e da própria medicina moderna, a cannabis incita a autonomia, porque cada indivíduo tem um sistema endocanabinoide único. Ele é como uma digital, consequentemente exige uma medicina individualizada.

No uso medicinal da cannabis, quem sabe a dose é o paciente, e isso requer um estudo de si mesmo muito aprofundado, não só no âmbito físico, mas também psicológico e de estilo de vida.

Toda a gama de condições físicas e mentais que a cannabis demonstra auxiliar e curar, não é milagre, são os fitocanabinoides que tem a capacidade de mimetizar os nossos endocanabinoides, aqueles que nós mesmos produzimos, e assim se ligar a esse conjunto de receptores do nosso corpo, o SEC.

Características da indústria da cannabis

Em países onde já ocorreu a legalização de forma total, como Uruguai e Canadá, e em outros parcial como nos EUA, a indústria da cannabis é formada por pessoas que lutaram pela sua legalização durante décadas, pacientes desiludidos com a medicina alopata e que encontraram na cannabis sua última esperança e também por quem vendeu e plantou nos porões inúmeras variedades da planta.

Mas é também formada pelas grandes corporações que viram a oportunidade de ganhar muito dinheiro e resolveram sair na frente na corrida do “ouro verde”. Somando essas partes, temos uma indústria diferenciada das demais por ela receber como herança do chamada “legacy market”, o legado de toda uma cultura que nomeei acima somada à cultura que a própria proibição criou, com seus códigos, costumes e linguagens.

O fato de ser um mercado criado basicamente nos anos 20 deste século, faz com que seja a primeira industria a ser criada com parâmetros sociais que colocam a mulher como igual e com conceitos de inclusão como pressuposto, é uma indústria onde a diversidade é primordial.

A indústria da cannabis não pode ser gerida por outra indústria, porque não é uma indústria que vende componentes químicos de uma planta, é uma indústria que vende, para além da planta, uma cultura e um estilo de vida.

Essa indústria que engatinha dentro da “legalidade” está longe de ser perfeita, tem muito espaço para se desenvolver e muitos problemas para solucionar, mas tudo isso dentro de sua comunidade.

Acrescento que as empresas com mais sucesso nesse mercado são também as que tem mais vínculo e respeito pelo legado do mercado ilegal que nos precedeu.

A indústria farmacêutica jamais terá um CEO que usa seu tempo de fala num evento corporativo para falar das pessoas encarceradas pelo porte de cannabis e não para vender e enaltecer seus produtos.

O discurso do CEO da Aurora, uma das grandes do mercado canadense fez isso na maior feira de business de cannabis do mundo.

Qual empresa farmacêutica criaria um setor de ativismo contratando ativistas de cannabis do país para criar iniciativas com a comunidade e continuar nas suas agendas de ativismo onde criticam a própria indústria que estão ajudando a forjar?

A maior do mundo da cannabis o fez, a Canopy Growth tem Hillary Black como o título de “chefe da militância” da empresa. Isso significa que temos distinção e história o bastante para sermos uma indústria independente.

Mercado legal

Podemos dividir a indústria da cannabis em duas vertentes: as que tocam a planta (legal e ilegal) e as que não tocam a planta.

Falando especificamente da realidade da indústria da cannabis no Brasil, temos na parte que não toca a planta as empresas de “parafernálias” como sedas, bongs, acessórios em geral, ferramentos para cultivo e extração, mídia com blogs, cannabis influencers, canais no Youtube, marketplaces, revistas e etc.

Somada a essa vertente, surgiram a pouco tempo as empresas de terpenos que produzem o “aroma” da cannabis em formato de óleo e que é vendido para ser adicionado à cannabis com a promessa de aumentar a potência dos efeitos psicotrópicos da planta. (Não aconselho por razões que vão além desse texto.)  

As empresas que tocam a planta ou componentes da planta de forma legal como as associações Abrace, na Paraíba, e a Apepi, no Rio de Janeiro.

Em uma outra esfera há as multinacionais que vendem o óleo de CBD e, mais recentemente, a Prati-Donaduzzi, primeira indústria farmacêutica do Brasil, localizada no Paraná, a receber autorização para importar insumos e produzir o remédio a base de CBD. 

Mercado ilegal

Na parte ilegal que toca a planta tem o tráfico e toda a sua cadeia de produção e distribuição interna, empresas ilegais de venda de semente e mudas e temos que considerar também o tráfico internacional que supre uma demanda de produtos mais elaborados e com mais qualidade como haxixe, vape pens e outras formas de óleos de cannabis.

A existência dessa indústria não pode ser ignorada ao pensar as novas regulamentações da cannabis no país, pelo contrário, esse conjunto de atuação de diferentes frentes tem que ser reconhecido como uma indústria e incentivado pelo governo em uma tentativa de remediar os danos que todos os anos da guerra às drogas e em especial a cannabis tem trazido de sofrimento, encarceramento e prejuízos no campo da saúde, educação, segurança pública, finanças e empreendimentos.

Reparação histórica

A Indústria da Cannabis surge na legalidade como uma reparação histórica e o lucro dessa indústria tem que ser das pessoas que mais sofreram com a guerra às drogas e que ainda hoje estão presas por vender as substâncias que estão sendo vendidas hoje nas farmácias.

Isso significa que essa indústria é dos negros, dos latinos, dos marginalizados, da cultura reggae, hippie e psicodélica, das mulheres, das comunidades GLBTQ+, dos O.G. (produtores originais) e todos que já estão nessa indústria ilegal a muito tempo.

E finalmente, essa indústria é também para quem está chegando agora e respeita a planta.

Diferente de outros fitoterápicos, a cannabis tem uma cultura e sua história não vai desaparecer em um rótulo genérico. É isso que acontece com a maioria das drogas nas farmácias que vem de plantas como é o caso da aspirina, que teve seu princípio ativo isolado da árvore do salgueiro, um conhecimento ancestral tradicional.

As pesquisas científicas sobre os componentes da cannabis e o corpo humano se multiplicam e confirmam cada vez mais o benefício do uso dessa planta domesticada há mais de cinco mil anos. 

Existe espaço para a exploração da indústria farmacêutica e com certeza a big pharma não vai querer ficar de fora desse mercado, só não podemos aceitar que a indústria da cannabis seja desconsiderada, mesmo porque, nas condições que o Brasil se coloca e a qualidade dos produtos que estão sendo comercializados no mercado nessa primeira etapa da legalização, é muito mais eficiente fazer seu medicamento em casa ou junto às associações que já atuam no mercado.

Por isso repito o meu mantra em caixa alta: A INDÚSTRIA DA CANNABIS NÃO É A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA.

*Por Luna Vargas, antropóloga e pesquisadora, trabalha como educadora de cannabis no mercado legalizado do Canadá.

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