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Zaccone: “Não se cria uma guerra para proteger vidas”

Em novembro de 2013, um helicóptero com 455 quilos de cocaína foi apreendido no interior do estado do Espírito Santo, região sudeste do Brasil. A aeronave pertencia ao deputado estadual Gustavo Perrella, filho do senador Zezé Perrella, que também é ex-presidente de um famoso time de futebol brasileiro, além de aliado histórico de Aécio Neves, atual candidato à presidência do país. Quem levou a culpa – e não passou mais do que alguns meses na cadeia – foi o piloto, libertado em abril.

Enquanto isso, o líder da primeira igreja rastafári do Brasil, Ras Geraldo Coptic, está preso desde agosto de 2012 após ser flagrado com pouco mais de 30 pés de maconha, os quais cultivava para uso religioso, condição esta – teoricamente – assegurada pela Constituição Federal. Acusado de tráfico de drogas, foi condenado a 14 anos de prisão e até mesmo suas testemunhas de defesa foram indiciadas pelo mesmo crime e aguardam julgamento.

Defensor da desmilitarização da polícia e da legalização de todas as drogas, Zaccone se afasta de todos os estereótipos que sua função poderia sugerir.

Os casos acima ilustram toda a controvérsia que cerca a política de drogas no Brasil, onde a aplicação das leis está sujeita aos mais diversos interesses e formas de corrupção. “A guerra às drogas consiste numa irracional cruzada moral. Mais pessoas morrem com a proibição do que pelo uso de qualquer uma destas substâncias proibidas. Não se cria uma guerra para proteger vidas”, afirma Orlando Zaccone, delegado de polícia e secretário geral da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) no país. Na América do Sul, trata-se da única representação da entidade anti-proibicionista norte-americana, que está presente em mais de 70 países.

Formado em jornalismo e direito, Zaccone exerce a função de delegado de polícia no Rio de Janeiro desde 1999. A rotina como policial o fez questionar a lógica por trás dos processos de criminalização, sobretudo no que diz respeito ao tráfico de drogas, um dos crimes mais cometidos no país. Em 2008, deu início ao projeto da LEAP Brasil em parceria com a juíza Maria Lúcia Karam. Formalizada em 2012, a entidade se dedica a propagar informações que possam ajudar a reduzir os danos da guerra às drogas.

Adepto do movimento Hare Krishna, Zaccone se declara abstêmio de qualquer tipo de droga – incluindo álcool – há mais de 18 anos. Não por acaso, é uma das principais vozes anti-proibicionistas a ecoar no país. Em conversa com a Maryjuana para a revista Soft Secrets Latam, o delegado mais legalizado do Brasil fala mais sobre a atuação da LEAP, os impactos e as possíveis soluções para a guerra às drogas no maior país sulamericano.

Maryjuana: Em que consiste a atuação da LEAP no Brasil? Quais ações a entidade desenvolve?

Zaccone:  O trabalho mais importante da LEAP é o de comunicar a necessidade de legalização da produção, comércio e consumo de todas as drogas. Somos mais de 100 membros no Brasil, incluindo policiais, juízes e agentes penitenciários. São pessoas que conhecem muito bem os prejuízos da proibição e sabem que a guerra às drogas é muito mais nociva do que o uso de qualquer substância. O fato de sermos operadores de direito facilita a recepção de nossos oradores em ambientes como escolas, igrejas, empresas e corporações policiais e militares. Nós defendemos a ideia de que não adianta legalizar apenas uma das drogas, pois dessa forma continuaríamos a viver no proibicionismo. Se regulamentar só a maconha, ela será apenas mais uma droga legalizada, como rivotril, lexotan, tabaco e álcool – ao lado de outras tantas drogas proibidas. Regulamentar somente o consumo também não resolve o problema, pois o mercado continuaria entregue à desregulamentação, o que gera a corrupção, violência e demais problemas associados ao tráfico.

MJ: Essa proposta de legalização total costuma ser questionada no que diz respeito às drogas mais lesivas, como o crack…

Zaccone: Com a regulamentação do mercado, a tendência é que estas drogas mais impuras desapareçam, pois haverá disponibilidade e controle sobre os princípios ativos. É mais ou menos como acontece com o cigarro e o álcool, para os quais há toda uma legislação sobre venda, consumo e publicidade. Até hoje existem cigarros e bebidas falsificadas e ilegais, mas quem em sã consciência vai optar por eles hoje se existe todo um mercado formalizado e acessível, com qualidade inegavelmente superior? Além disso, o álcool e o cigarro trazem hoje prejuízos enormes à saúde pública, mas quem se arriscaria a propor sua proibição como forma de sanar os problemas?

MJ: Para a maioria das pessoas, é impensável um agente da lei que seja a favor da legalização das drogas, pois o papel do policial é reprimir seja o usuário, seja o traficante. Como você lida com essa contradição?

Zaccone: A maioria das pessoas tende a achar que quem defende a legalização sempre é usuário. Não por acaso, meu apelido na polícia é “Zaconha” (mistura de Zaccone com maconha). Isso faz parte da reação gerada por uma cultura que sempre tratou a questão das drogas no nível dos debates sobre os efeitos das substâncias no organismo. Há quem não compreenda que uma pessoa que não usa drogas pode militar pela legalização das drogas, sem nenhum tipo de interesse pessoal. O maior problema do país é acreditar que é na base da punição que vamos fazer o controle social, sendo que isso só será atingido através da legalização.

MJ: Qual a importância do tráfico de drogas para o aumento da criminalidade no Brasil?

Zaccone: Atualmente o tráfico de drogas é o segundo crime que mais encarcera no Brasil, perdendo apenas para o roubo. Mas com certeza o tráfico é o crime que por mais tempo mantém alguém encarcerado, sendo um dos principais responsáveis pela superlotação nos presídios brasileiros, que hoje comportam mais de 500 mil pessoas em todo o país. E isso é fruto de uma lei injusta que descriminalizou a conduta do usuário, ao mesmo tempo em que aumentou a pena para os comerciantes. Se você tem pessoas que querem consumir essas substâncias ilícitas, sempre haverá quem estará disposto a fornecê-las. Então é no mínimo uma ingratidão,além de uma hipocrisia, punir a venda com penas altíssimas (de 5 a 15 anos de reclusão) se você autoriza o consumo.

MJ: Considerando-se a maioria, qual é o perfil do “traficante brasileiro”?

Zaccone: Traficante é quem é identificado como traficante. Os criminalizados no tráfico são os varejistas e, dificilmente, os produtores, basta relembrar o caso recente do helicóptero com quase meia tonelada de cocaína, que foi abafado. Inclusive, este é o tema que abordo no livro “Acionistas do Nada”, a seletividade penal que elege os pequenos traficantes como principais clientes do sistema punitivo. Sabemos que as drogas movimentam uma economia grande e que os grandes fluxos de capitais das drogas ilícitas segue para o sistema financeiro. Então o processo de criminalização acontece na parte que dá menos lucro, o varejo. E uma coisa é o traficante pobre, da periferia, morador de favela. A outra é o traficante rico, que quase sempre recebe tratamento diferenciado, penas alternativas, regalias. Ou seja, a proibição gera muita injustiça por todos os lados, até mesmo quando tenta colocar sua pretensa justiça em prática. No caso das mulheres presas por tráfico, geralmente elas nunca estão ligadas a nenhuma organização criminosa, pelo contrário, são as chamadas “criminosas do amor”, pois em sua maioria são identificadas ao tentar entrar na cadeia levando drogas para seus companheiros que estão detidos.

MJ: Em se tratando da legalização da maconha, você considera que o Brasil estaria pronto hoje para um projeto de regulamentação semelhante ao que foi adotado pelo Uruguai?

Zaccone: Sim, afinal não existe isso de “estar preparado”. Você se prepara, assim como o Uruguai vem se preparando, pois houve vontade política para isso, da mesma forma nos Estados Unidos. O Brasil tem toda a condição de promover uma experiência de legalização, ao contrário do que dizem aqueles que defendem a guerra às drogas. Normalmente estas pessoas utilizam as falhas do sistema público de saúde como justificativa para a proibição, como se todo o consumo fosse problemático. Não há nem mesmo dados que comprovem que a legalização aumenta o consumo das drogas – pelo contrário, há pesquisas recentes realizadas nos Estados Unidos que sugerem exatamente o contrário, que o consumo aumentou justamente nos estados onde a maconha não é legalizada. Chega a ser uma insanidade insistir em algo que não funciona. Sabemos por experiência histórica que todas as substâncias proibidas sofreram um “boom” no consumo após serem banidas.

MJ: Na sua opinião, qual o maior problema social do Brasil hoje: o crack ou a Polícia Militar?

Zaccone: Acima de tudo, o problema maior do Brasil é a pobreza. O crack só se estabeleceu por conta de ser uma droga barata – e por isso ela é tão lesiva, sabemos que quanto mais barata, pior tende a ser a substância oferecida, afinal com o proibicionismo você sempre tem a oferta das piores drogas possíveis no mercado. Há dados da Anistia Internacional que apontam que, em 2011, só nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro se matou mais do que nos países onde existe pena de morte. São mortes provocadas durante ações policiais, que legitimam suas ações ao atribuir ao morto a condição de traficante. É uma guerra cruel e injusta, incentivada e patrocinada pelo Estado brasileiro. Mas é claro que há muito interesses por trás disso tudo. Afinal, se as drogas fossem legalizadas, não haveria justificativa para a ocupação militar nas favelas do Rio de Janeiro. De certa forma, a guerra às drogas é um dispositivo do poder político para gerir o ambiente social de uma forma oculta, sem que as pessoas percebam.

*Entrevista publicada originalmente na revista Soft Secrets Latam (setembro/outubro 2014). 

**Foto: Matias Maxx/semSemente

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