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Comprei drogas pela internet e a correspondência foi apreendida; e agora?

O advogado criminalista Thiago Knopp responde à dúvida dos leitores que querem saber: “comprei drogas pela internet e a correspondência foi apreendida pelos Correios; e agora?”.

Na contramão de países que reconheceram o fracasso da violenta e genocida guerra às drogas e que adotaram modelo de redução de danos para lidar com questão quem mais tem a ver com saúde pública do que com polícia, o Brasil insiste na criminalização da produção, comércio e consumo de substâncias tachadas de ilícitas.

Isso tem levado usuários, receosos com a ausência de critérios que, de modo claro, diferenciem o seu comportamento daquele que configura o crime de tráfico de drogas, a buscarem alternativas para adquirir drogas sem a necessidade de deslocamento aos locais de comércio (as vulgarmente conhecidas “bocas de fumo”).

Uma dessas alternativas é a compra, pela internet (através da deep web, redes sociais, etc.), de substâncias consideradas ilícitas no Brasil vindas de países como os Estados Unidos e a Holanda, por exemplo, e enviadas por correspondência pelos Correios.

Tanto é que, conforme matéria publicada no dia 16 de janeiro deste ano no G1, o número de drogas em correspondências enviadas pelos Correios em 2019 é quase o dobro em comparação ao ano de 2018.

Usuário ou traficante?

O comportamento do consumidor, contudo, pode configurar o crime de tráfico de drogas, uma vez que importar (ou seja, trazer de fora) drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar não encontra previsão no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 (posse/porte para consumo pessoal), mas apenas no art. 33, o que levaria a uma criminalização desproporcional do usuário, contribuindo para a superlotação do sistema penitenciário brasileiro.

Acreditamos, no entanto, que o enquadramento típico da ação no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 seja mais adequado aos casos em que não for demonstrada, além da dúvida razoável, que a importação da droga se destinava ao comércio ilícito de entorpecentes.

Como se sabe, a Lei n. 11.343/2006 prevê os crimes de posse/porte de drogas para consumo pessoal e de tráfico nos arts. 28 e 33, respectivamente, vejamos:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Observem que os núcleos do tipo previstos no art. 28 (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo) são igualmente ações nucleares que configuram o crime do art. 33, porém, com cominação de penas diferentes (advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e/ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, com relação ao art. 28 e reclusão de cinco a quinze anos e pagamento de quinhentos a mil e quinhentos dias-multa, referente ao art. 33).

Chamamos a atenção para o tratamento penal distinto dispensado aos crimes dos arts. 28 e 33, com maior rigor punitivo em relação ao tráfico de drogas, cuja pena privativa de liberdade cominada pode variar entre cinco e quinze anos, bem como sua equiparação aos crimes hediondos e todas as consequências daí advindas, conforme disposto no art. 5, inc. XLIII, da CRFB/88 e no art. 2º da Lei n. 8.072/1990 (maior tempo de cumprimento de pena para progredir de regime e obter livramento condicional; impossibilidade de concessão de indulto; etc.).

De suma importância, portanto, realizar o adequado enquadramento típico da conduta daquele que, por exemplo, traz consigo (no bolso, na carteira, na mochila etc.) droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de modo a verificar se configura posse/porte para consumo pessoal ou tráfico.

Seletividade

A Lei n. 11.343/2006, para tanto, adotou o sistema do reconhecimento judicial ou policial, cabendo ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir se a droga apreendida era para destinação pessoal ou para tráfico (Gomes, 2013, p. 147).

Nesse sentido, a lei estabeleceu uma série de critérios, vejamos: “art. 28. […] § 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Para que se possa falar no crime do art. 28, dessarte, é preciso que quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar o faça para consumo pessoal, especial fim de agir exigido expressamente no caput do dispositivo, devendo a autoridade judicial ou policial se debruçar sobre os critérios estabelecidos pelo parágrafo 2º do mesmo art. 28 para decidir se a substância apreendida se destinava ao uso pessoal ou ao tráfico.

Noutro giro, temos a questão relativa a conduta de importar (trazer de fora) droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar que, como vimos, está prevista apenas no art. 33, não encontrando correspondência no art. 28.

Considerando que para a configuração do crime de tráfico de drogas o tipo não exige expressamente – ao contrário do que faz o art. 28 – especial fim de agir, isto é, que as condutas sejam praticadas com a finalidade de mercancia, quem importar droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para consumo pessoal ou não, estará, em tese, incurso nas penas cominadas ao crime de tráfico (reclusão de cinco a quinze anos e pagamento de quinhentos a mil e quinhentos dias-multa).

Como dito, não nos parece a subsunção típica mais adequada aos princípios da ofensividade e da proporcionalidade (art. 5º, XXXV e LIV da CRFB/88, respectivamente), principalmente se considerarmos o estado de coisas inconstitucional em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, que amontoa em verdadeiras masmorras, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, 773.151 pessoas que, dizem, estão sendo ressocializadas…

Dessa forma, pensamos que em havendo especificação legal do dolo no art. 28 (especial fim de consumo pessoal), para que se respeitem os princípios constitucionais da ofensividade e da proporcionalidade, igualmente deve ser pressuposto da imputação da conduta de importar droga sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar o desígnio mercantil.

Do contrário, em não havendo esta comprovação ou havendo dúvida quanto a finalidade de comércio, é imprescindível a desclassificação para o art. 28 (Carvalho, 2013, p. 326).

Nesse sentido, registra-se o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. PLEITO DESCLASSIFICATÓRIO. DESNECESSÁRIO REVOLVIMENTO DE PROVAS. ALEGADA POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO. AUSÊNCIA DE PROVA DA TRAFICÂNCIA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL. REGRA PROBATÓRIA DECORRENTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. RECURSO PROVIDO. […] 8. O Ministério Público – sobre quem pesa o ônus da prova dos fatos alegados na acusação – não comprovou a ocorrência de mercancia ilícita da droga encontrada em poder do recorrente, ou que a tanto se destinava […] 12. Recurso provido para desclassificar a conduta imputada ao réu para o crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 […] (REsp n. 1.769.822/PA, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. em 27/11/2018, grifei).

Referências Bibliográficas:

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2013.

GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. 5ª. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

*Por: Thiago Hygino Knopp, advogado criminalista com foco em casos de Consumo Pessoal e Tráfico de Drogas, inscrito na OAB/RJ nº 165.680. Especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal (UCAM). Também é editor do blog Pergunte ao Criminalista e da página no Instagram @pergunteaocriminalista. Contato: e-mail: [email protected]

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