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Como a pandemia de covid-19 afeta os processos judiciais de usuários de drogas?

No artigo desta quinzena converso com vocês, leitores da coluna, sobre um caso concreto que, em tempos de pandemia, acredito será frequente nos tribunais pelo país afora.

Trata-se de um usuário que é acusado de importar (trazer de fora do país), em 2 de outubro de 2018, sem autorização, 10 comprimidos de LSD vindos da Holanda e enviados para o Brasil por correspondência.

Após procedimento de rotina (análise por scanners, etc.), a correspondência foi retida por funcionário dos Correios em Curitiba/PR, que, suspeitando tratar-se de conteúdo ilícito, encaminhou o material para a Polícia Federal.

Uma vez aberta a correspondência e examinados os comprimidos por perito criminal, concluiu-se no sentido de que a substância é proibida no Brasil pela Portaria MS/SVS 344/1998, estando configurado, dessa forma, crime previsto na Lei de Drogas brasileira.

Considerando, no entanto, que a importação da droga ocorreu para consumo pessoal, os atores do sistema de justiça criminal (Polícia Federal, Ministério Público Federal e Magistratura Federal) enquadraram a conduta no art. 28, caput, da Lei n. 11.343/2006 e encaminharam o caso para o Juizado Especial Criminal da Capital do Rio de Janeiro.

Audiência preliminar

Em razão da pandemia provocada pelo novo coronavírus e que, como se sabe, mudou drasticamente a rotina da população mundial em razão da adoção de medidas para a prevenção do contágio, em especial o distanciamento social, o fechamento da economia e a suspensão de atividades não essenciais, a audiência preliminar designada para abril de 2020, como era de se esperar, não aconteceu, de modo a se aguardar a retomada da realização dos atos processuais presenciais.

Isso porque o Poder Judiciário, em respeito ao que recomendado pelas autoridades de saúde, suspendeu a realização de atos processuais presenciais durante a pandemia, passando a funcionar em regime de plantão extraordinário, de modo a analisar apenas as medidas judiciais de caráter urgente.

Até o momento, apesar da retomada gradual das atividades presenciais, mas mantida a orientação para que os atos processuais ocorram, preferencialmente, em ambiente virtual, visando evitar a aglomeração de pessoas, não há previsão sobre para quando a audiência preliminar será remarcada.

Nesse ponto do texto, você pode estar se perguntando aonde quero chegar com essa narrativa que já rendeu vários parágrafos…

Explico.

Se por um lado, a dogmática penal tradicional ensina que uma vez praticado o crime nasce para o Estado o direito de punir o seu autor, por outro, não pode o acusado permanecer à disposição desse mesmo Estado indefinidamente, de modo que o Direito Penal dispõe de institutos que fulminam o jus puniendi quando demonstrada a falta de interesse estatal na imposição e/ou execução da pena em um prazo razoável legalmente determinado.

Denomina-se prescrição, nesse sentido, a perda do direito de punir do Estado, pelo decurso de tempo, em razão do seu não exercício, dentro do prazo previamente fixado (Bitencourt, 2011, p. 810).

Tendo em vista, portanto, a opção legislativa de criminalizar o comportamento daquele que “adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, a Lei de Drogas brasileira dispõe, em seu art. 30, que “prescrevem em 2 anos a imposição e a execução das penas”.

Voltando ao caso concreto com o qual iniciamos, observem as datas mencionadas linhas acima, especialmente o dia em que a correspondência com os 10 comprimidos de LSD foi retida pelo funcionário dos Correios (2 de outubro de 2018).

Observe a data

O dia 2 de outubro de 2018, portanto, indica o momento em que o crime se consumou, ou seja, quando a droga proscrita pela Portaria MS/SVS 344/1998 ingressou no território brasileiro, uma vez que estamos falando de importação (trazer de fora do país).

Conforme estabelece o Código Penal, é a partir desse momento que começa a correr o prazo de 2 anos previsto no art. 30 da Lei n. 11.343/2006 para que o Estado puna legitimamente o autor do fato criminoso (art. 111, I).

É importante esclarecer que a situação de pandemia provocada pelo novo coronavírus não configura hipótese de suspensão ou interrupção do prazo prescricional, uma vez que não prevista em lei, como exige o princípio da legalidade em matéria de Direito Penal (art. 5°, XXXIX, da Constituição Federal).

Considerando, portanto, que desde a data em que o crime se consumou (2 de outubro de 2018) transcorreu período de tempo superior aos 2 anos previsto na Lei de Drogas para que o Estado imponha a pena, é de se concluir que, nesse caso, está extinto o seu direito de punir o autor do fato previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006.

A consequência de ser reconhecida e declarada a prescrição do fato pelo juiz é que fica o Estado impedido de impor medidas alternativas ao usuário (advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e comparecimento programa ou curso educativo), uma vez que extinto o direito de punir, tendo em vista o seu não exercício no prazo legal.

Concluindo, por acreditar, como disse, que casos semelhantes surgirão nos tribunais pelo Brasil afora durante a pandemia, oriento que você, leitor da coluna, fique atento ao instituto da prescrição e, conforme for, analise se já não ocorreu a extinção da punibilidade do fato descrito no art. 28 da Lei de Drogas e pelo qual é acusado, na medida em que o reconhecimento da prescrição pode conduzir a situação mais favorável quando comparada, por exemplo, com a gerada ao aceitar proposta de transação penal. 

Referências Bibliográficas

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 16ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2011.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª. Edição. Bahia: Juspodivm, 2020.

*Por: Thiago Hygino Knopp, advogado criminalista com foco em casos de Consumo Pessoal e Tráfico de Drogas, inscrito na OAB/RJ nº 165.680. Especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal (UCAM). Também é editor do blog Pergunte ao Criminalista e da página no Instagram @pergunteaocriminalista. Contato:  [email protected]

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2 Responses

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  2. Yuri

    Excelente conteúdo e muito bem escrito! Ajuda bastante neste momento onde muita gente está nessa situação. Grande abraço.

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